Como sempre foi
Originalmente publicado no blog Collaborative Fund em 15 de junho de 2020
Como sempre foi
As pessoas gastam tempo de mais nas últimas 24 horas e tempo de menos nos últimos 6 000 anos.
"Will Durant"
Eis um punhado de curtas histórias sobre coisas que nunca mudam num mundo que nunca pára de mudar.
As coisas que nunca mudam são as mais importantes a que devemos prestar atenção. A mudança atrai mais atenção, porque é emocionante e surpreendente. Mas as coisas que se mantêm iguais - como se comportam as pessoas, como pensam, como são persuadidas - são o verdadeiro sumo da história.
A citação de Voltaire, "a história nunca se repete, mas o homem sempre", resume tudo. Prever o futuro é difícil. Poucos o conseguem fazer. Compreender o que se está a passar na cabeça das pessoas é mais fácil e quase tão útil. O mundo em 2020 não se parece em nada com o mundo de 1920, que era um universo diferente em comparação a 1920 AC. Mas a forma como a cabeça das pessoas funciona não mudou. A forma como pensamos sobre medo, ganância, oportunidade, escassez e afiliações tribais não mudou. E não mudará no tempo das nossas vidas.
Se, em vez de tentarmos prever o futuro, prestássemos toda a atenção ao punhado de comportamentos que surgem constantemente na história e desempenham um papel fulcral em todos os grandes momentos, chegamos o mais perto possível de ver o futuro. Continuamos a não fazer ideia do que vai acontecer no futuro. Mas ficamos menos surpresos com o que quer que aconteça, menos confusos com o porquê de algo acontecer e mais confiantes quanto à forma como as pessoas reagem ao acontecimento.
Existem dezenas destes comportamentos que merecem atenção. Quero falar sobre quatro.
A primeira é uma história sobre bombas nucleares.
1. Acontecem grandes riscos quando vários riscos pequenos se combinam e reagem entre si. No entanto, os pequenos riscos são fáceis de ignorar e é por isso que as pessoas subestimam sempre as probabilidades dos grandes riscos.
Os soviéticos construíram uma bomba nuclear 1 500 vezes mais potente que a lançada em Hiroshima.
Chamada Tsar Bomba (rei das bombas), era 10 vezes mais poderosa do que todas as bombas convencionais lançadas durante a Segunda Guerra Mundial juntas. Quando foi testada na Rússia, a sua bola de fogo pode ser avistada a 600 milhas de distância. A sua nuvem de cogumelo subiu a 42 milhas altitude.
O historiador John Lewis Gaddis escreveu:
"A ilha onde detonaram a explosão foi literalmente nivelada, não apenas de neve, mas também de rochas. Parecia um imenso ringue de patinagem. Uma estimativa calculava que ... a tempestade de fogo resultante teria engolido uma área do tamanho do estado de Maryland."
A bomba nuclear foi desenvolvida para acabar com a Segunda Guerra Mundial. No espaço de uma década, a América e a União Soviética dispunham de bombas capazes de acabar com o mundo - todo o mundo.
No entanto, o facto de serem tão mortíferas constituía um facto positivo: os países dificilmente as utilizariam em batalha. Dizime a capital de um inimigo e eles farão exatamente o mesmo passados 60 segundos - que sentido faz então preocuparmo-nos? John F. Kennedy afirmou que nenhum dos países desejava "uma guerra que deixasse não uma Roma intacta, mas duas Cartago destruídas".
Em 1960, contornamos esta situação, seguindo o caminho contrário. Construímos bombas nucleares menores e menos mortais. Uma delas, chamada Davy Crocket, era 650 vezes menos poderosa que a bomba lançada em Hiroshima e podia ser disparada por um soldado, como uma bazuca. Construímos minas terrestres nucleares que cabiam numa mochila, com uma ogiva do tamanho de uma caixa de sapatos.
Estas armas nucleares pequenas pareciam ser mais responsáveis, menos arriscadas. Era possível utilizá-las sem acabar com o mundo.
Mas o tiro saiu pela culatra.
As bombas nucleares pequenas corriam o risco de serem realmente utilizadas em combate. Era este o seu verdadeiro propósito. Elas baixaram a fasquia do uso justificado.
Isto mudou as regras do jogo, para pior.
O risco passou a ser que um país utilizasse "responsavelmente" uma pequena arma nuclear em batalha, iniciando uma escalada de retaliação que abriria as portas para a utilização de uma das grandes bombas.
Nenhum país iniciaria uma guerra com uma bomba grande. Mas lançariam uma pequena? Provavelmente. E uma pequena bomba justificaria a retaliação com uma grande? Sim. Pequenos riscos não foram a alternativa a grandes riscos; foram o gatilho. Os mísseis soviéticos em Cuba eram 3 000 vezes menos potentes que a Tsar Bomba. Mas o lançamento de um deles, segundo o secretário de Defesa Robert McNamara, teria levado a uma "probabilidade de 99%" de que a América retaliaria com todo o seu poderio nuclear. Robert Oppenheimer, o físico que ajudou a criar a bomba, deprimido com o poderio destrutivo da bomba, defendeu a criação de armas nucleares menores para reduzir o risco. Admitiu mais tarde que foi um erro, uma vez que a probabilidade de um ataque nuclear aumentou.
Os grandes riscos são fáceis de ignorar, porque não são mais que uma reação em cadeia de pequenos eventos, cada um deles ainda mais fáceis de ignorar. Portanto, as pessoas subestimam sempre as probabilidades dos grandes riscos.
Já assistimos a isto uma e outra vez.
Em 1929, ninguém imaginava que ia haver uma Grande Depressão. Se alertássemos as pessoas em 1929 que o mercado estaria prestes a cair 90% e o desemprego saltaria para os 25%, elas rir-se-iam na nossa cara.
Não havia complacência nas pessoas. No final dos anos 20, o mercado de ações estava sobrevalorizado, a especulação imobiliária dominava e a manutenção dos terrenos agrícolas era muito pobre. Isto era óbvio. Estava bem documentado. E foi debatido até à exaustão. Mas e depois? Isoladamente, nenhuma destas coisas é importante.
Só quando aconteceram simultaneamente e se "alimentaram" mutuamente é que se transformaram na Grande Depressão.
O mercado de ações cai, o patrão perde as poupanças, despede os trabalhadores, os trabalhadores deixam de pagar os seus empréstimos e o banco vai à falência. Quando os bancos vão à falência, as pessoas perdem as suas poupanças. Quando perdem as suas poupanças, as pessoas deixam de consumir. Quando deixam de consumir, as empresas fecham. Quando as empresas fecham, os bancos vão à falência. Quando os bancos vão à falência, as pessoas perdem as suas poupanças - e assim por diante, num ciclo vicioso aparentemente sem fim.
Hoje, assistimos a uma coisa semelhante.
A economia global parou de março a maio. Simplesmente parou. Isto nunca tinha acontecido antes. Parece que fomos atingidos por um risco insondável, com uma probabilidade ínfima de ocorrer, um risco para o qual os manuais de economia nunca nos alertaram.
No entanto, não fomos atingidos por um risco de um num bilião. O que aconteceu - e só conseguimos dizer isto em retrospetiva - foi um conjunto de pequenos riscos que colidiram e se multiplicaram simultaneamente.
Um vírus transmitido dum animal para um humano (aconteceu sempre) e esse humano interagiu com outras pessoas (obviamente). Foi um mistério durante algum tempo (compreensível) e, de seguida, muito provavelmente, más notícias foram suprimidas (mau, mas comum). Os outros países pensaram que a epidemia seria contida (padrão de negação habitual) e não agiram com a rapidez necessária (burocracia, falta de liderança). Não estávamos preparados (excesso de otimismo) e só conseguimos responder com confinamentos obrigatórios (reação desesperada).
Nada disto, por si só, é surpreendente. Mas juntos, transformaram-se provavelmente no maior evento das nossas vidas.
É bom assumirmos que o mundo vai passar por uma crise uma vez por década, uma vez que, historicamente, sempre o fez. Estas crises aparentam ser eventos de baixa probabilidade, por isso é comum pensarmos que elas não vão continuar a acontecer. No entanto, acontecem repetidas vezes, porque, na verdade, são apenas eventos de alta probabilidade que se multiplicam uns aos outros. Isto não é intuitivo e é por este motivo que ignoramos sempre os grandes riscos.
Como sempre foi.
2. O otimismo é o combustível do progresso, e sem ele as pessoas param. Portanto, encontramos frequentemente o otimismo mesmo quando as probabilidades estão contra nós e os factos não estão alinhados.
"O Sonho Americano" foi uma expressão utilizada pela primeira vez pelo autor James Truslow Adams no seu livro de 1931, The Epic of America.
O momento é interessante, não acham? É difícil imaginar um ano em que o sonho parecesse menos vivo do que 1931.
Quando Adams escreveu "se um homem se esforçar, utilizando os talentos que possui, adquirindo as habilitações necessárias, é capaz subir de um status mais baixo para um mais elevado e sua família pode subir com ele", a taxa de desemprego era de quase 25% e a desigualdade na distribuição da riqueza era das mais elevadas na história americana.
Quando escreveu sobre "aquele sonho americano de uma vida melhor, mais rica e mais feliz para todos os cidadãos de todos os níveis", motins em busca de comida eclodiam em todo o país, à medida que a Grande Depressão despedaçava a economia.
Quando Adams escreveu sobre "ser capaz de crescer e atingir o pleno desenvolvimento como homens e mulheres, sem que as barreiras que lentamente foram erguidas nas civilizações mais antigas os impeçam", as escolas eram segregadas e alguns estados exigiam testes de literacia para poder votar.
Em raros momentos da história americana como este, a ideia do Sonho Americano parecia tão falsa, tão desligada da realidade que todos enfrentavam.
No entanto, o livro de Adams tornou-se bastante popular. Uma frase otimista nascida durante o período mais sombrio da história americana tornou-se, do dia para a noite, um lema familiar.
O facto de um quarto dos americanos não terem emprego em 1931 não destruiu a ideia do sonho americano. O mercado de ações cair 89% e existirem filas para o pão em todo o país também não.
Na verdade, até pode ter ganho popularidade porque as coisas estavam mesmo muito mal. Não era preciso ver o sonho americano para acreditar nele - e graças a Deus, porque em 1931 não havia nada para ver. Só era preciso acreditar que era possível e, bum, já nos sentíamos um pouco melhor.
Os psicólogos Lauren Alloy e Lyn Yvonne Abramson avançaram uma teoria, que eu adoro, chamada realismo depressivo. É a ideia de que as pessoas deprimidas têm uma visão mais precisa do mundo, porque são mais realistas sobre o quão arriscada e frágil é a vida.
O oposto do realismo depressivo é "alegremente inconsciente". É disto que a maioria de nós sofre. Na realidade, no entanto, não sofremos, porque nos sentimos bem. E o fato de nos sentirmos bem é o combustível que precisamos para acordar e continuar a trabalhar, mesmo quando o mundo à nossa volta é, objetivamente, horrível.
Tali Sharot, no seu livro The Optimism Bias, escreve (ênfase minha):
"O otimismo protege-nos da perceção "real" das dores e dificuldades que o futuro, sem dúvida, nos reserva e pode impedir-nos de encarar as nossas opções de vida como um tanto limitadas. Como resultado, o stress e a ansiedade são reduzidos, a saúde física e mental é fortalecida e a motivação para agir e ser produtivo é reforçada. Para progredir, precisamos de ser capazes de imaginar realidades alternativas - não quaisquer realidades, mas melhores - e precisamos de acreditar que elas são possíveis."
Essa última frase é crucial. Contamos a nós próprios histórias sobre o nosso potencial de progresso, porque, se formos realistas sobre o quão comum é o fracasso e a dor, nunca sairíamos do sofá.
Poucos iniciariam um negócio se fossem honestos consigo próprios sobre as suas hipóteses de sucesso ou quão difícil será o caminho para o sucesso.
Poucos seriam tão otimistas quanto ao sonho americano se analisassem friamente as estatísticas sobre a mobilidade de rendimentos e a desigualdade económica.
Poucos tentariam bater os índices do mercado de ações.
Ninguém compraria bilhetes de loteria.
Mas as pessoas fazem todas estas coisas. Eu próprio também faço algumas.
A ideia de que a maioria das pessoas é excessivamente otimista relativamente ao seu próprio futuro - mesmo que seja pessimista em relação ao dos outros - surge com frequência ao longo da história.
No seu livro Fantasyland, Kurt Andersen argumenta que a sua disponibilidade, e até desejo, de acreditar em coisas que não são verdadeiras é uma virtude fundamental da América.
Tudo começou com a noção idealizada do Novo Mundo, quando contaram aos europeus do século XVI histórias de uma terra mágica do outro lado do Atlântico cheia de abundância, apenas para quando finalmente lá chegaram, encontrarem um pântano e malária.
Continuou com coisas como P.T. Barnum e Hollywood. Day trading, publicidade e comícios políticos.
"Desde o início, o nosso ultra-individualismo esteve intimamente ligado a sonhos e fantasias épicos - todos os cidadãos eram livres para acreditar em absolutamente qualquer coisa ou em fingir ser qualquer um", escreveu Andersen.
As pessoas acreditam em coisas que não são verdadeiras, coisas que são apenas vagamente verdadeiras, coisas que são verdadeiras, mas improváveis, ou coisas que são verdadeiras, mas sem contexto. Fazer o contrário é muito doloroso. As pessoas contam histórias, procuram estatísticas e cercam-se de incentivos para que as suas crenças pareçam o mais reais possível.
As pessoas sempre fizeram isto.
Ninguém se deve surpreender quando as pessoas continuam a fazer isto, porque esta é uma parte fundamental do funcionamento dos seres humanos.
Como sempre foi.
3. As pessoas tentam evitar o menor desconforto, mesmo quando a dor é suportável, e tentar evitá-la cria riscos maiores.
Gabby Gingras nasceu incapaz de sentir dor. Ela tem um sentido do tato completo. Mas uma condição genética rara deixou-a completamente incapaz de sentir dor física.
Ela pode cair da bicicleta e levantar-se como se nada tivesse acontecido.
Bater com o dedo do pé e nem perceber.
Poderemos pensar que isto é um superpoder ou uma dádiva inacreditável. Mas a sua vida - sobre a qual várias reportagens foram feitas durante a última década - é terrível.
A incapacidade de sentir dor deixou Gabby impotente para distinguir o certo do errado no mundo físico. É uma daquelas coisas fáceis de ter como garantida, até que desaparece. Uma das reportagens resumiu uma fração da sua vida:
"Quando nasceram os dentes de leite de Gabby, ela mutilou o interior da boca. Gabby não tinha consciência dos danos que causava, porque não sentia a dor que a alertaria para parar. Os seus pais assistiam impotentes.
"Ela mastigava os dedos e a língua como se fosse pastilha elástica", explicou Steve Gingras, pai de Gabby. "Ela esteve internada 10 dias no hospital porque a sua língua estava tão inchada que ela não conseguia beber".
A dor também impede que os bebés coloquem os dedos nos olhos. Sem dor para a parar, Gabby coçou tanto os olhos que os médicos suturaram as pálpebras temporariamente. Hoje ela é legalmente cega devido aos ferimentos autoinfligidos na infância."
A dor é miserável. A vida sem dor é um desastre.
Não sou um estoico que acredita que devemos abraçar a dor e fazer o possível para a experimentar. Gosto de sapatos confortáveis e de uma temperatura confortável, muito obrigado.
No entanto, não podemos negar que a dor é o guia mais útil para o que funciona e o que não funciona. Se removermos a dor, ficaremos a vaguear num espaço entre o inconsciente e o imprudente.
Por isso, é interessante o quão nos esforçamos para evitar a mais pequena dor, mesmo quando o tiro nos pode sair pela culatra.
Existem vários aspetos da vida em que a melhor estratégia é aceitar um pouco de dor como preço de entrada. A nossa reação natural, no entanto, é exclamar: "Não, não, não. Não quero dor, nem um pouco."
A história do mercado de ações é que sobe muito no longo prazo, mas cai frequentemente no curto prazo. As quedas são dolorosas, mas os ganhos são surpreendentes. Tolere um aspeto e ganha o outro.
No entanto, grande parte da indústria de investimentos dedica-se exclusivamente a tentar evitar as quedas. Eles preveem a próxima queda de 10% ou 20% e vendem antecipadamente. Eles erram praticamente sempre. São, no entanto, atraentes para os investidores porque pedir às pessoas que aceitem a dor temporária de perder 10% ou 20% - talvez mais do que uma vez por década - é insuportável. A maioria dos investidores que conheço sabem que conseguiremos um melhor desempenho se simplesmente suportarmos a dor das quedas em vez de tentar evitá-los. Mesmo assim, tentam evitá-las.
O lado positivo de simplesmente aceitar e suportar a dor das quedas temporárias do mercado é que as quedas futuras não doem tanto. Já sabemos que são apenas parte da vida.
As empresas fazem a mesma coisa. Muitas empresas "ajustam" os seus lucros - esta é a forma caridosa de o dizer - para evitar dizer aos seus investidores que os lucros caíram temporariamente durante um trimestre. A General Electric foi o grande mestre desta estratégia. O CEO Jack Welch escreveu nas memórias sobre como a GE lidava com um mau trimestre:
"A resposta dos nossos chefes de departamento às crises era típica da cultura da GE. Embora as contas tivessem sido fechadas no trimestre, muitos se ofereciam imediatamente para colaborar para cobrir a diferença nos lucros. Alguns afirmavam que conseguiram encontrar 10, 20 e até 30 milhões dólares nos seus negócios para compensar a surpresa."
Aparentemente, valia para ajudar os investidores a evitar a mais pequena dor, mesmo que essa dor tivesse raízes na realidade. A ironia é o que veio a acontecer mais tarde: os acionistas da GE sofreram uma década de perdas gigantescas que antes eram encobertas por malabarismos contabilísticos.
A ideia de que as pessoas são hipersensíveis ao desconforto e que moverão montanhas para o evitar, mesmo quando ele é controlável e que o ato de evitar esse desconforto gera riscos maiores, é uma característica estranha. Mas é comum. Eu diria que é mesmo uma característica padrão.
Este é parte do motivo pelo qual as pessoas mentem.
Porque não fazem exercício físico suficiente.
E porque toda a gente quer um truque ou um atalho.
No filme Lawrence da Arábia, há uma cena em que um homem extingue um fósforo com as pontas dos dedos e nem sequer pestaneja. Outro homem, ao vê-lo, tenta fazer o mesmo e grita de dor.
"Isto dói! Qual é o teu truque?" pergunta.
"O truque é não te importares que doa", diz Lawrence.
Aceitar um pouco de dor tem enormes benefícios. Mas sempre será raro, porque dói.
Como sempre foi.
4. O desacordo é constante porque está enraizado nas experiências individuais. Passar por um período de stress pronunciado pode alterar permanentemente determinados comportamentos, e deixar certos países e gerações com sentimentos extremados relativamente a tópicos específicos.
O psicólogo Ivan Pavlov treinou os seus cães a salivar.
Fez isso acionando uma campainha imediatamente antes de alimentar os cães. Os cães aprenderam a associar o som da campainha à iminência de uma refeição, o que desencadeava uma resposta salivar.
Os cães de Pavlov ficaram famosos porque ensinaram aos psicólogos a ciência do comportamento aprendido.
Menos conhecido é o que sucedeu aos pobres cães anos mais tarde.
Em 1924, uma enorme inundação alagou Leningrado, onde Pavlov mantinha o seu laboratório e canil. A água da inundação atingiu as jaulas dos cães. Vários morreram. Os cães sobreviventes foram forçados a nadar 400 metros até um local seguro. Pavlov comentou mais tarde que esta foi a experiência mais traumática, por larga margem, que os cães tinham vivido.
Algo de fascinante aconteceu: os cães aparentemente esqueceram o comportamento aprendido de salivar após o toque da campainha.
Pavlov escreveu acerca de um cão, 11 dias após que as águas terem recuado:
"Após o soar (da campainha), todos os restantes reflexos condicionados desapareceram quase completamente, o animal recusou a comida novamente, mantinha-se extremamente inquieto e olhava continuamente para a porta."
Sempre curioso, Pavlov dedicou meses ao estudo de como a inundação tinha alterado o comportamento dos seus cães. Muitos nunca mais foram os mesmos - adquiriram personalidades completamente diferentes após o dilúvio e o comportamento aprendido que antes estava enraizado, desapareceu. Ele resumiu o que aconteceu e como isso se aplica aos seres humanos:
"Condições diferentes causadoras de excitação extrema levam frequentemente a perdas profundas e prolongadas no equilíbrio da atividade nervosa e psíquica ... poderão desenvolver-se neuroses e psicoses como resultado de extremo perigo para si próprio ou para amigos íntimos, ou até para o testemunho de algum evento assustador que não o afeta diretamente."
As pessoas tendem a ter memória curta. Na maior parte das vezes, esquecem as más experiências e não levam em conta as lições aprendidas anteriormente.
Mas o stress extremo deixa cicatrizes.
Passar por algo que nos faz encarar a ruína de frente ou duvidar da própria sobrevivência pode redefinir permanentemente as nossas expetativas e alterar comportamentos anteriormente arreigados.
É esta a base do PTSD (desordem de stress pós-traumático) e deixa marcas mesmo em casos que nada têm a ver com a guerra.
É por esta razão que a geração que viveu a Grande Depressão nunca mais olhou para o dinheiro da mesma forma. Eles pouparam mais dinheiro, utilizavam menos crédito e eram extremamente avessos ao risco - para o resto das suas vidas. Isto era óbvio ainda antes do fim da Depressão. Em 1936, a revista Fortune escreveu:
"A geração universitária de hoje é fatalista. Não arriscará o pescoço. Mantém as calças apertadas, o queixo erguido e a boca fechada. Se considerarmos a média como a verdade, é uma geração cautelosa, moderada e pouco aventurosa."
É por isto que os países que sofreram guerras devastadoras têm uma maior preferência por sistemas de segurança social. O historiador Tony Judt escreve sobre a Europa do pós-guerra:
"Só o estado é capaz de oferecer esperança ou salvação à massa da população. E no rescaldo de uma depressão, ocupação ou guerra civil, o estado - como agente de bem-estar, segurança e justiça - foi uma fonte vital de coesão social e comunitária. Hoje, muitos comentadores estão dispostos a ver a dependência do estado como o problema europeu e a salvação de cima como a ilusão da época. Mas, para a geração de 1945, o equilíbrio viável entre liberdades políticas e a função distributiva racional e equitativa do estado administrativo parecia ser o único caminho sensato para sair do abismo."
É por este motivo que os baby boomers que viveram as décadas de 70 e 80 pensam na inflação de uma forma que a geração millennial não consegue compreender.
E esta é a razão pela qual podemos separar os empreendedores de tecnologia de hoje em dois conjuntos claramente diferentes - aqueles que sofreram o crash das dot.com e aqueles que não o fizeram porque eram demasiado jovens.
Duas coisas tendem a acontecer depois de sermos atingidos por um evento grande e inesperado:
- Extrapolamos o que acabou de acontecer, mas com uma força e consequências ainda maiores.
- Prevemos com enorme convicção, apesar do evento original ter sido altamente improvável e que poucos, se alguém, previram.
Quanto maior for o impacto da surpresa, mais isto é verdade.
E, mais importante, quanto mais pessoas não viveram esse grande evento, mais dificuldade terão em compreender o nosso ponto de vista.
A estória mais antiga da história é a de dois lados que não concordam entre si. É provavelmente o enredo mais importante, a raiz de quase todos os grandes eventos sociais.
A questão "Por que não concordas comigo?" pode ter infinitas respostas.
Por vezes, um lado é egoísta, estúpido, cego ou desinformado.
Mas, de uma forma geral, uma questão melhor é: "O que viveste, e eu não, que faz com que acredites no que acreditas? Pensaria no mundo como tu, se tivesse vivido o que viveste?"
Esta é a questão que contém mais respostas sobre os motivos pelos quais as pessoas não concordam entre si.
Mas é uma pergunta tão difícil de fazer.
Não é confortável imaginar que o que não vivemos pode mudar as nossas convicções, uma vez que estamos a admitir a nossa própria ignorância. É muito mais fácil assumir que aqueles que discordam de nós não estão a pensar tão bem como nós.
Portanto, as pessoas vão discordar, mesmo quando o acesso à informação é cada vez mais fácil. Elas poderão até discordar mais do que nunca porque, uma vez que, como diz Benedict Evans, "quanto mais a Internet expõe as pessoas a novos pontos de vista, mais irritadas elas ficam porque percebem que existem pontos de vista diferentes".
O desacordo tem menos a ver com o que as pessoas sabem e mais com o que elas viveram pessoalmente.
E como as experiências serão sempre diferentes, o desacordo será constante.
Como sempre foi.