

A última decisão do maior pensador mundial sobre decisões
Artigo publicado originalmente no The Wall Street Journal, na coluna de Jason Zweig, The Intelligent Investor
Pouco tempo antes de Daniel Kahneman falecer, em março de 2023, ele enviou por email uma mensagem aos seus amigos: ele tinha escolhido terminar a sua vida na Suíça. Alguns dos amigos continuam a debater-se com a sua escolha.
Em meados de março de 2024, Daniel Kahneman voou de Nova Iorque para Paris com a sua companheira, Barbara Tversky, para se juntar à sua filha e à sua família. Passaram dias a passear pela cidade, visitaram museus, assistiram ao ballet, e saborearam soufflés e mousse de chocolate. Por volta de 22 de março, Kahneman, que tinha completado 90 anos nesse mês, começou também a aneviar, por email, uma mensagem pessoal a várias dúzias das pessoas de quem era mais chegado.
A 26 de março, Kahneman deixou a sua família e voou para a Suíça. O email explicava porquê:
Esta é uma carta de despedida que estou a enviar aos meus amigos para lhes dizer que estou a caminho da Suíça, onde a minha vida terminará a 27 de março.
Kahneman foi um dos pensadores mais influentes do mundo – psicólogo na Universidade de Princeton, vencedor do Prémio Nobel de economia e autor do blockbuster internacional, “Thinking, Fast and Slow”, publicado pela primeira vez em 2011. Dedicou a sua longa carreira ao estudo das imperfeições e inconsistências da tomada de decisões humanas. Segundo a maioria das opiniões – embora não a sua – Kahneman encontrava-se ainda de razoavelmente boa saúde física e mental quando escolheu morrer.
Quando foi anunciada, há quase um ano, a morte de Kahneman foi lamentada um pouco por todo o mundo. Porém, só a família e alguns amigos mais íntimos sabiam que esta tinha ocorrido numa clínica de suicídio assistido na Suíça. Alguns destes amigos e familiares estão ainda a tentar compreender e aceitar a sua decisão.
Eu também. Conhecia Kahneman há quase três décadas e passei dois anos, excitantes e exasperantes, a ajudá-lo a pesquisar, escrever e editar “Thinking, Fast and Slow”. Em 2008, tivemos um “divórcio do livro”, pois Danny sentia que precisava de seguir o seu próprio caminho para terminar o livro – e eu juntei-me ao The Wall Street Journal.
A nossa separação, no entanto, foi amigável; nos anos seguintes, entrevistei-o em eventos ao vivo e regularmente para a minha coluna de investimentos no Journal. Mantínhamo-nos em contacto por email e telefone. Não recebi o seu email final, embora várias pessoas o tenham partilhado comigo no último ano.
Para mim, a morte de Danny desperta todo o tipo de sentimentos. Quando estava na universidade, o meu pai tirou a própria vida com uma overdose de comprimidos para dormir. O meu pai, no entanto, estava a sofrer dores excruciantes; o cancro do pulmão tinha metastizado para os seus ossos e, após várias cirurgias, ele recusou-se a permitir que os médicos o continuassem a tratar sem esperança de cura.
A minha mãe e o meu irmão e eu segurámos-lhe as mãos e dissemos-lhe que o amávamos. Durante a vigília noturna, eu adormeci, sentado na sua cama; quando acordei, o meu pai tinha partido.
Não pude dizer adeus a Danny e não compreendo completamente porque é que ele sentiu que tinha de partir. A sua morte levanta questões profundas: como é que a maior autoridade mundial na tomada de decisões tomou a derradeira decisão? Quão fielmente seguiu os seus próprios preceitos sobre como fazer boas escolhas? Como é que a sua decisão se encaixa no crescente debate sobre as desvantagens da longevidade extrema? Que controlo temos, e devemos ter, sobre a nossa própria morte?
Antes das pesquisas revolucionárias que Kahneman conduziu, muitas das quais com o falecido marido de Barbara Tversky, Amos Tversky, os economistas assumiam, desde sempre, que os seres humanos são racionais. Com isto, queriam dizer que as crenças das pessoas são internamente consistentes, tomam decisões com base em toda a informação relevante e as suas preferências não se alteram.
Numa série de experiências simples e brilhantes, Kahneman e Tversky refutaram essa definição de racionalidade. Kahneman, no entanto, nunca defendeu que as pessoas são irracionais. Pelo contrário, argumentava que as pessoas são inconsistentes, emocionais e facilmente enganadas – mais facilmente ainda, por si próprias. “A autoilusão ajuda a sustentar a maioria das pessoas”, Kahneman disse-me há vários anos. Em resumo, Kahnemann concluiu que as pessoas não são nem racionais nem irracionais; são, simplesmente, humanas.
Kahneman afirmava frequentemente que décadas de estudo da mente humana o ensinaram a reconhecer – mas não na evitar – estas armadilhas na tomada de decisões.
Acredito que Danny queria, acima de tudo, evitar um longo declínio, sair nos seus próprios termos, ser dono da sua morte. Talvez os princípios da boa tomada de decisões que ele tanto defendeu – confiar nos dados, não confiar na maioria das intuições, encarar as evidências na perspetiva mais ampla possível – tivessem pouco a ver com a sua decisão.
Os seus amigos e família dizem que a escolha de Kahneman foi puramente pessoal; ele não recomendou o suicídio assistido para mais ninguém e nunca desejou que o vissem como alguém que o defendia para outros.
Alguns amigos de Kahneman pensam que o que ele fez era consistente com as suas próprias pesquisas. “Até ao fim, ele foi muito mais inteligente que a maioria de nós,” afirma Philip Tetlock, psicólogo na Universidade da Pensilvânia. “Mas não sou nenhum leitor de mentes. O meu melhor palpite é que ele sentia-se a desmoronar, cognitiva e fisicamente. E ele queria mesmo desfrutar da vida e esperava que a vida se tornasse cada vez menos agradável. Suspeito que ele terá calculado o momento em que os fardos da vida começariam a ser mais pesados que os benefícios – e provavelmente previu um declínio muito rápido a partir dos 90 anos.”
Tetlock acrescenta, “Nunca vi uma morte mais bem planeada do que a de Danny.”
A mulher de Kahneman, Anne Treisman, tinha falecido de um acidente vascular cerebral em 2018, após vários anos em que padeceu de demência vascular. A sua doença foi extremamente dolorosa para Kahneman; ele escreveu-me em julho de 2015, “Estou muito preocupado com a saúde de Anne e não estou a funcionar nada bem.” Ele convidou-me para uma cerimónia em sua memória no seu apartamento em fevereiro de 2018, embora não tenha podido comparecer. Anos antes, a sua mãe também tinha falecido após declínio cognitivo.
Nos meus arquivos, tenho o primeiro rascunho de um capítulo que Kahneman esboçou em inícios de 2008 para o livro “Thinking, Fast and Slow”. Danny escreveu, “Na sua última doença, a minha mãe perdeu o seu eu que recorda… ela não conseguia dizer nada sobre a sua última estadia no hospital porque se recordava de muito pouco. Descobri, para minha consternação, que sabia muito mais sobre o que ela tinha passado do que ela própria.”
Kahneman não queria que isso lhe acontecesse. O seu email final indicava que ele sentia que isso estaria perto:
Acredito, desde jovem, que as misérias e indignidades dos últimos anos de vida são supérfluas, e estou a agir com base nessa crença.
Um dos seu princípios mais queridos, no entanto, era a importância de reconsiderar. “A maioria das pessoas detesta mudar de opinião,” afirmava, “mas eu gosto de mudar de opinião. Isso significa que aprendi alguma coisa.”
Tal como escrevi num artigo sobre Kahneman no ano passado: “Certa vez mostrei-lhe uma carta que tinha recebido de um leitor que me dizia – correta, mas pouco educadamente – que eu estava errado acerca de algo. “Tens ideia da sorte que tens por ter milhares de pessoas que te podem dizer que estás errado?” respondeu-me Danny.”
Kahneman tinha confidenciado a algumas das pessoas mais íntimas os seus planos semanas antes de voar para a Suíça. Apesar das suas tentativas para o convencer a adiar a decisão, ele não cedeu. Um amigo insistiu tanto que Kahneman finalmente lhe pediu para parar. Relutantemente, o amigo abandonou os seus esforços para tentar convencer Kahneman a mudar de ideias.
“Não tenho custo irrecuperáveis”, gostava de dizer Kahneman. Procurava sempre que fossem as evidências, e não a quantidade de esforço ou compromisso anterior, a determinar as suas crenças e ações. Mas, de algum modo, ele não conseguiu desembaraçar-se de uma opinião que tinha formado décadas antes.
A vida era certamente preciosa para ele. Kahneman e a sua família judia passaram muita da sua infância a esconder-se dos nazis no sul de França durante o Holocausto. “Éramos caçados como coelhos,” afirmou Kahneman.
Ainda sou uma pessoa ativa, tiro prazer de muitas coisas na vida (exceto as notícias diárias) e vou morrer um homem feliz. Mas os meu rins estão a falhar, a frequência de lapsos mentais está a aumentar e eu tenho noventa anos. É hora de partir.
Kahneman acabara de completar 90 anos a 5 de março de 2024. Mas não fazia diálise e aqueles que lhe eram mais próximos não viam sinais de declínio cognitivo significativo ou depressão. Kahneman estava a trabalhar em vários artigos científicos na semana em que faleceu.
Barbara Tversky, professora emérita de psicologia na Universidade de Stanford, escreveu num ensaio online, pouco tempo após a sua morte que os últimos dias em Paris tinham sido mágicos. Tinham “caminhado, caminhado e caminhado num tempo idílico… riram e choraram e jantaram com a família e amigos.” Kahneman “levou a sua família à sua casa de infância em Neuilly-sur-Seine e aos locais onde costumava brincar do outro lado do rio no… Bosque de Bolonha”, recorda Barbara. “Durante as manhãs, escrevia; tardes e noites eram para nós, em Paris.”
Certa tarde, segundo o seu ensaio online, Barbara perguntou a Kahneman o que gostaria de fazer. “Quero aprender alguma coisa”, foi a resposta.
Kahneman sabia da importância psicológica dos finais felizes. Em diversas experiências, demonstrou aquilo a que deu o nome de Regra do Pico-Fim: recordarmo-nos se uma experiência foi agradável ou dolorosa não depende de quanto tempo sentimos que foi boa ou má, mas sim da intensidade máxima (pico) e final (fim) dessas emoções.
“Foi motivo de consternação para os amigos e família de Kahneman o facto de ele parecer estar a tirar tanto prazer da vida, naqueles dias finais”, recorda um amigo. “”Porquê parar agora?” implorámos-lhe. E embora ainda deseje que ele nos tivesse dado mais tempo, o facto é que, ao levar a cabo este plano cuidadosamente pensado, Danny foi capaz de criar um final feliz para uma vida de 90 anos. Não o teria conseguido se tivesse permitido que a natureza seguisse o seu curso.”
Completar 90 anos contribuiu para esta decisão? As primeiras pesquisas de Kahneman e Tversky demonstraram que, quando as pessoas se sentem incertas, estimam números por “ancoramento”, isto é, agarram-se a qualquer número que esteja à mão, independentemente de quão relevante é para a decisão.
Outro dos princípios de Kahneman era a importância de adotar aquilo a que chamava a visão externa: em vez de encarar cada decisão como um caso especial, devemos considerá-la como fazendo parte de uma classe de situações semelhantes. Recolhemos dados de exemplos comparáveis nessa classe de referência e, depois, consideramos se o nosso caso particular tem melhores ou piores perspetivas.
Uma abordagem possível: Kahneman poderá ter recolhido dados para determinar se as pessoas que vivem até aos 95 anos de idade ou mais tendem a arrepender-se de não terem morrido aos 90 – ajustando para a dificuldade de obter relatos fiáveis de pacientes com demência ou outras condições debilitantes. Talvez tenha feito algo semelhante; Não sei.
Ele parece ter-se concentrado atentamente noutra questão. O parágrafo seguinte do email final de Kahneman diz:
Não surpreendentemente, alguns daqueles que me amam prefeririam que eu esperasse até que se tornasse óbvio que não valia a pena prolongar a minha vida. Tomei, porém, a minha decisão precisamente porque queria evitar esse estado. Tinha, por isso, de parecer prematura. Estou grato aos poucos com quem partilhei mais cedo e que, relutantemente, acabaram por me apoiar.
A amiga de Kahneman, Annie Duke, teórica de decisões e ex-jogadora profissional de póquer, publicou um livro em 2022 intitulado “Quit: The Power of Knowing When to Walk Away”. Nele, escreveu, “Desistir a tempo vai, muitas vezes, parecer desistir cedo de mais.”
Duke está frustrada com a decisão de Kahneman. “Há uma grande diferença entre sentir que é cedo demais e realmente ser cedo demais,” afirma. “Não estás num estado terminal, estás bem. Porque é que não adotas a visão externa? Porque é que não dás ouvidos às pessoas que te dão conselhos bons e objetivos? Porque é que estás a fazer isto?”
Paul Slovic, psicólogo na Universidade de Oregon e que é amigo de Kahneman há mais de 50 anos, afirma, “Danny era o tipo de pessoa que pensa muito sobre as coisas, por isso, acredito que ele tenha pensado nisto lenta e deliberadamente. Claro que, quem passa a vida, como nós, a estudar decisões, pensa muito sobre as razões para essas decisões. Mas muitas vezes, as razões não são razões. São emoções.”
O email final de Kahneman continua:
Não tenho vergonha da minha escolha, mas também não estou interessado em fazer dela uma declaração pública. A família evitará os detalhes quanto à causa da morte, tanto quanto possível, porque ninguém quer que esse seja o foco dos obituários. Por favor, evitem falar disto durante alguns dias.
Embora o suicídio assistido se mantenha ilegal na maioria dos países, está a aumentar. A morte assistida é legal na Suíça se o paciente estiver em pleno uso das suas faculdade mentais, tiver pelo menos 18 anos e os motivos de quem o assiste não forem egoístas. O paciente deverá autoadministrar a dose letal.
É um tópico intensamente emocional. Uma sondagem recente da Gallup questionava se deveria ser legal que médicos assistissem doentes terminais com dores severas a cometer suicídio. 66% dos americanos disseram que sim. Por outro lado, numa outra sondagem Gallup, 40% dos participantes afirmaram que o suicídio assistido por médicos é “moralmente errado”.
Para além do potencial de abuso, penso que a razão para a ambivalência é óbvia. Se terminarmos a nossa vida prematuramente, antes de estarmos em dor aguda ou declínio mental, protegemo-nos a nós próprios e a quem amamos do sofrimento iminente. Mas também expomos os nossos entes queridos à dor da nossa ausência e ao arrependimento de nunca compreender totalmente a nossa escolha e por que motivo não lhes demos ouvidos.
O email final de Danny continua:
Descobri, após tomar a decisão, que não tenho medo de não existir, e que penso na morte como adormecer e não voltar a acordar. Este último período não foi, na verdade, difícil, exceto testemunhar a dor que causei nos outros. Portanto, se estiver tentado a sentir pena de mim, por favor, não o faça.
À medida que a morte se aproxima, devemos aproveitar ao máximo o tempo que nos resta com aqueles que mais amamos? Ou devemos poupá-los, e a nós mesmos, ao nosso inevitável declínio? A nossa morte é só nossa?
Danny ensinou-me a importância de dizer “Eu não sei”. E eu não sei as respostas àquelas questões. Sei que as palavras finais do seu email final me soam bem, ainda que, de alguma forma, me pareçam erradas:
Obrigado por ajudarem a fazer da minha vida uma boa vida.