

Ninguém sabe (mais uma vez)
Ensaio originalmente publicado no site da Oaktree Capital em 9 de abril de 2025
Na segunda-feira, 15 de setembro de 2008, pouco depois do fecho da bolsa de Nova Iorque, a Lehman Brothers surpreendeu o mundo ao declarar falência. Isto aconteceu após os resgates/falências da Bear Sterns e Merrill Lynch e, logo de seguida, aconteceu de novo com a Wachovia, Washington Mutual e AIG. Os participantes do mercado concluíram rapidamente que o setor financeiro americano estava prestes a colapsar. Era agora óbvio (ao contrário de alguns dias antes) que as instituições financeiras poderiam cair como dominós dada a combinação de (a) desregulação financeira, (b) um boom maníaco no imobiliário de habitação (c) créditos à habitação insensato, (d) a estruturação dos créditos à habitação em milhares de títulos com ratings demasiado elevados, (e) investimento nestes títulos por parte de bancos demasiado alavancados e (f) “risco de contraparte” resultado da interligação entre os bancos. Esta tese não podia ser refutada e, portanto, os mercados embarcaram numa espiral de queda que parecia não ter fim.
Senti que devia comentar estes desenvolvimentos e o resultado foi um memo chamado Ninguém sabe, publicado quatro dias depois. Afirmei a minha ignorância do futuro, como habitualmente, mas num grau ainda maior, dado que todas as expetativas anteriores tinham sido derrubadas. Ninguém sabia – especialmente eu – quando a espiral iria parar. Contudo, conclui que tínhamos de assumir que a espiral negativa iria parar e, por isso, deveríamos investir dinheiro nos ativos financeiros a estes preços com grande desconto.
Não havia nada que alguém pudesse dizer que demonstrasse que “sabiam”, e eu estava incluído no grupo. Eu limitei-me a tirar algumas conclusões, que foram as seguintes:
• Não conseguimos, com confiança, prever o fim do mundo,
• Não temos a mais pequena ideia do que fazer se o mundo acabasse,
• As coisas que teríamos de fazer para nos prepararmos para o fim do mundo seriam desastrosas se o mundo não acabasse, e
• Na esmagadora maioria das vezes, o mundo não acaba.
Obviamente, não baseei estas conclusões no conhecimento do futuro. Mas não vi qualquer outra solução lógica que não começar a por dinheiro a trabalhar, incluindo os 10 mil milhões de dólares parados no Opportunities Fund VIIb. Tínhamos constituído esse fundo para nos prepararmos para oportunidades extremas em dívida em dificuldades. Como podíamos ficar parados quando a oportunidade surge? E, ainda assim, não fazíamos ideia do que o futuro traria.
Não posso dizer que analisei o futuro. Aliás a expressão “analisar o futuro” é um contrassenso. O futuro ainda não foi criado e está sujeito a milhões de fatores complexos, não quantificáveis e incognoscíveis, que estão sempre em fluxo. Podemos ponderar o futuro e especular sobre o futuro, mas não há como analisar o futuro e, certamente, muito menos nos dias iniciais da Crise Financeira Global.
Em março de 2020, reutilizei o título do memo de 2008 para Ninguém sabe II, o meu primeiro memo durante a pandemia Covid-19. Nele, citei o epidemiologista de Harvard Marc Lipsitch, que afirmou que, habitualmente, nós tomamos decisões com base em (a) factos, (b) extrapolações informadas de experiências análogas, e (c) opiniões e especulações. Mas, uma vez que não existiam factos aplicáveis relativos a uma pandemia Covid-19 e nenhumas experiências análogas, só nos restava a especulação.
Quero reforçar aqui que, em 2008 e noutras crises em que investi – assim como a atual – que eu não chego às minhas conclusões com total confiança ou ajo sem trepidação. No mundo do investimento, não existe lugar para a certeza absoluta, e isto é particularmente verdadeiro em momentos de transição e durante períodos de convulsão. Nunca tenho a certeza se as minhas respostas estão corretas, mas se consigo racionalizar o que é mais lógico, sinto que devo agir nessa direção.
A Perspetiva Incerta
No meu memo de fevereiro de 2024, que só foi distribuído a clientes, afirmei que a palavra certa para descrever a administração Trump era, “incerteza”. O pensamento do presidente Trump parece menos previsível que o de muitos outros presidentes, em grande medida porque não se coaduna com uma ideologia consistente, e está constantemente sujeito a ser aplicado e revisto taticamente. Devo notar, no entanto, que Trump se queixa da forma como os Estados Unidos são tratados no comércio mundial e defende as tarifas desde, pelo menos, 1987. Dito isto, e embora soubéssemos que Trump ia aumentar tarifas, ninguém antecipou a magnitude dos aumentos. Os mercados, claramente, não.
Os eventos da semana passada fazem-nos recordar os eventos de 2008 e a Crise Financeira Global que se seguiu. Todas as regras foram deitadas fora. A forma como o comércio mundial operou nos últimos 80 anos pode ser de pouca relevância para o futuro. O impacto nas economias e no mundo é inteiramente imprevisível. Enfrentamos decisões de larga escala, no entanto, mais uma vez, não existem factos ou experiências anteriores nas quais basear essas decisões. Ninguém verdadeiramente sabe, e muito deste memo será acerca de coisas sobre as quais não podemos ter certezas. Espero, no entanto, que ajude os leitores a organizar e avaliar essas questões.
Quero realçar que não existem peritos no assunto em questão. Os economistas têm ferramentas analíticas e teorias para aplicar, mas nenhum economista ou ferramenta chegarão a uma conclusão neste assunto que possamos seguir com confiança absoluta. Na era moderna, nunca tivemos uma guerra comercial em larga escala; assim, as teorias não foram testadas. Investidores, pessoas de negócios, académicos e líderes de governos, todos dão conselhos, mas nenhum deles tem maior probabilidade de estar certo do que o observador inteligente médio. As coisas com que todos concordam são óbvias, como a probabilidade de preços mais elevados. As verdades menos óbvias são mais difíceis de descortinar.
Uma das coisas em que eu insisto é que, mesmo para alguém que lida com o futuro através de previsões, uma previsão não é suficiente. A juntar à previsão, é necessária uma boa ideia da probabilidade de que a previsão está certa. Neste caso, nestas circunstâncias, teremos de aceitar que as previsões terão ainda menos probabilidades de serem acertadas do que o habitual.
Porquê? Em primeiro lugar, devido ao vasto número de coisas que não sabemos sem precedentes envolvidas neste assunto, que tem o potencial de se tornar o maior evento económico das nossas vidas. Aqui, não existe presciência, apenas complexidade e incerteza, e devemos aceitá-las como verdadeiras. Isto significa que se insistirmos em ter certezas ou confiança como precondição para agirmos, vamos ficar paralisados. Ou, atrevo-me a dizer, se chegarmos à conclusão de que tomámos decisões com certeza ou confiança, provavelmente estaremos errados. Temos de tomar decisões na ausência daqueles dois fatores – certeza e confiança.
Mas também temos de manter em mente que decidir não agir não é o oposto de agir; é, em si mesma, uma ação. A decisão de não agir – manter um portfólio inalterado – deverá ser escrutinada tão criticamente como uma decisão de fazer mudanças. Não devemos permitir que os velhos ditados que são o refúgio dos investidores aterrorizados – “não vamos tentar apanhar facas em queda” e “devemos esperar para que a poeira assente e que a incerteza seja resolvida” – determinem o nosso comportamento. Adoro o título de um livro escrito por um analista de mercado chamado Walter Deemer: Quando Chega a Altura de Comprar, Não Vais Querer. Os desenvolvimentos negativos que causam as maiores quedas nos preços são aterrorizadores e desencorajam as compras. Mas, quando os desenvolvimentos negativos surgem em catadupa, essa é, frequentemente, a melhor altura para agir.
Por último, dado o foco tático de Trump, é importante ter a consciência que absolutamente qualquer coisa está sujeita a mudanças. Não deverá surpreender ninguém se Trump conseguir concessões e declarar vitória… ou se responder à retaliação de outros países escalando ainda mais a situação. Assim, afirmei numa conferência na Wharton na passada sexta-feira que, se alguém pensa que sabe qual será a tarifa aplicada a determinado país daqui a três meses, aposto bom dinheiro em como estarão errados – mesmo sem saber o que eles acham ser a resposta.
Tarifas
Quais são as razões do presidente Trump para impor tarifas e serão essas razões válidas? No dia do anúncio, ouvi um comentador na televisão afirmar que os “impulsos” de Trump teriam alguma justificação. Quais são os seus objetivos? Estes incluem alguns ou todos os seguintes:
• Apoiar a indústria americana
• Encorajar exportações
• Desencorajar importações
• Reduzir ou eliminar o défice comercial
• Tornar as cadeias de fornecimento mais seguras
• Dissuadir práticas comerciais injustas para com os EUA
• Forçar outros países à mesa de negociação
• Gerar receitas para o Tesouro americano
Devemos reconhecer que cada uma destas coisas é desejável em si mesma e são uma consequência lógica das tarifas.
Se fosse assim tão fácil. O problema é que no mundo real, especialmente na economia, existem consequências de segunda e terceira ordem que devem ser consideradas. Se não existissem, a economia seria tão fiável como as ciências físicas, “se fazes A, então acontece B”. Tal como o físico teórico, Richard Feynman afirmou, “imaginem o quão mais difícil seria a física se os eletrões tivessem sentimentos.” Bem, as economias e os mercados são compostos quase inteiramente por pessoas, e as pessoas têm sentimentos, o que faz com que as reações seja, imprevisíveis. Na economia, outros reagirão a A, assim como ao resultado B, que a ação A produziu, e temos de considerar o efeito dessas reações. As repercussões são, não apenas, significativas, mas também imprevisíveis. Para além disto, a política desempenha um papel particularmente importante e imprevisível na matéria em questão, com cálculos muito próprios.
Quais são algumas das consequências mais prováveis das tarifas de Trump? A lista é longa e muitas são particularmente sérias:
• Retaliação de outros países
• Aumentos de preços e subida da inflação
• Destruição da procura devido aos aumentos de preços e quebra na confiança dos consumidores
• Recessões e perda de empregos, nos EUA e no resto do mundo
• Escassez de oferta
• Uma mudança massiva na ordem mundial
Há muitas linhas que podemos seguir e se tentar fazer justiça a todas elas, estaremos aqui para sempre. Portanto vou abordar apenas algumas.
Alguns países vão negociar – no final de contas, na maior parte dos casos, para utilizar a terminologia de Trump, os EUA têm “as melhores cartas na mão”. Mas outros não vão negociar, talvez porque os seu líderes querem parecer fortes, levando a uma escalada. “Tarifas recíprocas” mais elevadas provavelmente não conseguirão nada de positivo e o mais certo é que piorem a vidas das pessoas de ambos os lados. Não será grande consolo se os problemas que venhamos a enfrentar sejam menos maus que os que venham a assolar outras nações.
Há poucas dúvidas se as tarifas aumentarão os preços. As tarifas são impostos sobre as importações, e alguém tem de as pagar. Isto é verdade no caso de bens comprados ao estrangeiro, assim como no caso de bens fabricados nos EUA, mas que incorporam materiais ou componentes importados. Isto significado que o seu efeito será generalizado. Embora seja o importador a pagar a tarifa na fronteira, o custo é habitualmente transferido para o derradeiro comprador dos bens, o consumidor. Em teoria, o fabricante, exportador, país exportador, ou importador pode optar por absorver o imposto para preservar o seu negócio, mas, na prática, não estarão dispostos a cortar os seus lucros e, em muitos casos, as suas margens de lucro não são suficientes para lhes permitir fazer isso.
No meu memo de março de 2022, The Pendulum in International Affairs, notei que entre 1995 e 2020, os preços ao consumidor dos bens duráveis caiu 40% em termos reais e a inflação total foi em média 1,8% ao ano. Os bens de consumo duráveis consistem principalmente de veículos, eletrodomésticos e produtos eletrónicos, e uma grande percentagem destes foi importado. Qual teria sido nível da inflação se estas importações tivessem sido desencorajadas ou proibidas?
Vamos, no entanto, assumir que os primeiros três objetivos listados acima são realmente atingidos, levando a que mais dos produtos adquiridos nos EUA sejam fabricados nos EUA:
• Primeiro, na maioria dos casos, não existe capacidade de produção suficiente que possa ser ativada. Por exemplo, duvido que exista uma fábrica nos EUA capaz de produzir ecrãs planos para televisões ou computadores. Levaria anos a construir capacidade suficiente para satisfazer uma percentagem significativa da procura dos EUA, o que significa que, no entretanto, haveria escassez e/ou os preços de venda provavelmente estariam nos níveis antigos mais as tarifas.
• Segundo, as novas fábricas projetadas para trazer de volta empregos de fabrico levariam anos a serem licenciadas e construídas, e o custo da construção teria de ser justificado por uma expectativa de lucros muitos anos no futuro. Isto acrescenta mais complexidade a decisões que já eram desafiadoras devido à incerteza em relação a desenvolvimentos futuros na automação e IA. Será provável que os CEOs se comprometam com esses investimentos com base em tarifas que podem estar sujeitas a renegociação (ou descontinuação quando uma nova administração tomar posse)? Tenha em mente que a tarifa de 25% de Trump sobre bens mexicanos e canadianos substituiu o Acordo Estados Unidos-México-Canadá que ele negociou durante o seu primeiro mandato e que entrou em vigor em 2020, que por sua vez substituiu o NAFTA, que foi promulgado em 1994.
• Terceiro, provavelmente não existem trabalhadores qualificados suficientes disponíveis nos EUA para substituir todos aqueles que na China e no mundo em desenvolvimento atualmente fabricam bens para nós.
• Quarto, por que razão é que os americanos têm comprado importações? Porque são mais baratas. Por que razão é que os EUA perderam os empregos que perderam? Porque os trabalhadores americanos eram mais bem pagos do que os trabalhadores noutros locais pelo mesmo trabalho, mas os produtos dos EUA não eram suficientemente bons para justificar preços de venda mais altos. Foi por isto que os EUA passaram de importar 330 Volkswagens em 1950 para mais de 400.000 em 2012. Não foi porque as tarifas dos EUA eram demasiado baixas. A simples verdade é que os bens estrangeiros muitas vezes custam menos do que bens comparáveis fabricados nos EUA. Mesmo que as tarifas sejam impostas a níveis suficientemente elevados no futuro, para tornar os bens fabricados nos EUA mais baratos do que as importações com tarifas, os preços serão mais altos, em termos absolutos, do que os americanos estão habituados a pagar. Esta manhã, por exemplo, foi mencionado na televisão que um smartphone fabricado nos EUA poderia custar 3.500 dólares.
Uma vez que a maioria dos americanos tem pouco rendimento disponível após pagar as necessidades básicas, o resultado de preços mais elevados será, provavelmente, a diminuição dos padrões de vida. Isto será verdade, a menos que os salários aumentem tão rapidamente como os preços. Neste caso improvável, estamos a falar de uma espiral inflacionária perigosa.
Preços mais altos provavelmente resultarão em vendas unitárias mais baixas e, portanto, em margens de lucro decrescentes. O meu economista favorito (um oximoro, eu sei), Conrad DeQuadros da Brean Capital, considera as margens de lucro das empresas o melhor indicador avançado de recessões. Quando as margens ficam sob pressão, as empresas param de fazer novos investimentos e iniciam despedimentos e outras formas de redução de custos, provocando muitas vezes crises económicas.
A economia é a ciência das escolhas e está repleta de compromissos. Isto é certamente verdade na área do comércio e das tarifas. Por exemplo, é amplamente relatado atualmente (não faço ideia de quão fiável é) que quando as tarifas foram impostas ao aço importado em 2018, 1.000 empregos foram salvos na indústria siderúrgica dos EUA. Mas perderam-se 75.000 empregos (ou potenciais novos trabalhadores não foram contratados) nas indústrias dos EUA que utilizam aço. Como serão feitas estas escolhas? Da mesma forma, como escrevi no memorando Economic Reality, em Maio de 2016:
Como serão contrabalançados os interesses dos 3,2 milhões de americanos que se estima terem perdido os seus empregos na indústria transformadora para a China, contra os das centenas de milhões que teriam de pagar consideravelmente mais por bens importados? Uma questão nada fácil.
Em todas as esferas da atividade económica, quanto mais incerteza as pessoas sentem, mais relutantes ficam em assumir riscos. Num mundo menos certo, com o qual poderemos ser forçados a enfrentar, as pessoas provavelmente estarão pouco dispostas a tomar decisões e a celebrar acordos, e provavelmente oferecerão menos por uma unidade de potencial de lucro.
John Maynard Keynes descreveu a atividade económica como sendo alimentada por "espíritos animais", que ele descreveu como "um impulso espontâneo para a ação em vez da inação, e não como o resultado de uma média ponderada de benefícios quantitativos multiplicados por probabilidades quantitativas” (segundo a Wikipédia). A fonte habitual deste impulso é o otimismo, talvez refletido na confiança do consumidor. Qual será a fonte de espíritos animais positivos no ambiente que se avizinha?
A situação internacional
O impacto dos desenvolvimentos nas tarifas estende-se significativamente ao cenário internacional e vai muito além da economia. O comércio global teve um efeito benéfico enorme em todo o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Juntamente com os gastos para a reconstrução após a guerra, o progresso tecnológico e da gestão, as melhorias na infraestrutura e a expansão dos mercados de capitais, a globalização contribuiu para uma maré económica crescente que levantou, na realidade, todos os barcos. Alguns países e algumas pessoas tiveram um desempenho melhor do que outros, claro, mas praticamente todos ficaram em melhor situação. Acredito que foi por causa disto, entre outras coisas, que beneficiamos de paz e prosperidade nos últimos 80 anos. Como resultado, tivemos o privilégio de viver no melhor período da história.
O principal benefício da globalização chama-se "vantagem comparativa". Cada país tem algumas coisas que produz melhor e/ou mais barato, e outras onde o inverso é verdadeiro. Se cada país produz os primeiros produtos e os vende para o resto do mundo, e compra os segundos produtos de outros países, o bem-estar coletivo é maximizado graças ao aumento da eficiência geral. Como afirmei, na Bloomberg TV, na sexta-feira, estamos todos em melhor situação porque a Itália faz a massa e a Suíça faz os relógios. Mas se as barreiras comerciais exigissem que a Itália fizesse os seus próprios relógios e a Suíça fizesse a sua própria massa, os cidadãos de ambos os países provavelmente acabariam por pagar mais pelos produtos que costumavam comprar mais baratos do estrangeiro, ou consumir produtos inferiores fabricados localmente, ou ambos.
Os cidadãos dos EUA, em particular, beneficiaram enormemente do facto de a maioria das coisas poder ser feita mais barata noutros países – e especialmente nas nações em desenvolvimento – porque os salários são mais baixos. Isto custou aos EUA alguns milhões de empregos, mas também permitiu que praticamente todos os americanos vivessem muito melhor do que viveriam se estivessem limitados a comprar bens fabricados nos EUA. Essa é a simples razão pela qual a maioria das mercadorias não alimentares no Walmart é importada.
Para citar mais um fator que tornou o mundo um lugar melhor, descrevo o comportamento dos EUA no período pós-Segunda Guerra Mundial como "generosidade para com o resto do mundo, com origem num interesse próprio esclarecido". Sob o Plano Marshall, oferecemos (não emprestámos) milhares de milhões de dólares com os quais a Europa Ocidental se reconstruiu. Da mesma forma, entre 1945 e 1952, o General Douglas MacArthur supervisionou a reconstrução do Japão e o fortalecimento da sua economia. Desde então, os EUA (a) distribuíram extensa ajuda externa, (b) investiram fortemente na saúde em nações em desenvolvimento, (c) criaram programas que trazem estudantes estrangeiros para os EUA e vice-versa, e (d) transmitiram mensagens positivas para pessoas em todo o mundo. Estes são todos exemplos de generosidade. Em cada "transação", demos mais do que recebemos diretamente, e um cínico poderia dizer que agimos como tolos.
Sim, estas coisas podem ser descritas como largueza, mas, como os Arquivos Nacionais afirmam, o Plano Marshall "criou mercados para produtos americanos, criou parceiros comerciais confiáveis e apoiou o desenvolvimento de governos democráticos estáveis na Europa Ocidental". Isto é um retorno bastante bom. As pessoas noutros países receberam muitos benefícios gratuitos, mas estes programas ajudaram os EUA, restringindo o comunismo, trazendo nações para um alinhamento defensivo com os EUA e contribuindo para a posição dos EUA como a nação mais próspera do mundo. Não tenho interesse em ver os EUA tornarem-se isolacionistas.
Mas é muito possível que este processo possa ser revertido:
• Se antagonizarmos os nossos parceiros comerciais e fizermos com que os nossos aliados se sintam como se estivessem a ser intimidados e extorquidos.
• Se forçarmos países que dependem de nós para capital e outras formas de assistência a recorrerem à China e à Rússia para essas coisas.
• Se convencermos o resto do mundo a investir menos nos EUA e menos nos títulos do Tesouro dos EUA.
Os dois primeiros pontos podem custar-nos aliados importantes e fazer com que as nações olhem menos favoravelmente para a democracia. Como diz o meu amigo Michael Smith, "Não se pode antagonizar e influenciar ao mesmo tempo". E o terceiro ponto influenciaria drasticamente a posição fiscal dos EUA.
Até à data, a opinião mundial sobre a economia, o Estado de direito e a solidez fiscal dos EUA permitiu-nos ter um "cartão de crédito dourado", onde não há limite de crédito e nenhuma fatura chega. Isto permitiu que os EUA tivessem défices fiscais em cada um dos últimos 25 anos e, nos últimos 45 anos, em todos, exceto quatro, incluindo défices de mais de um trilião de dólares em cada um dos últimos cinco anos. Por outras palavras, temos sido capazes de viver acima das nossas possibilidades, com o governo federal a gastar mais do que arrecada através de impostos e taxas. Isto levou a uma das piores coisas sobre os EUA: a dívida nacional de 36 triliões de dólares e o comportamento grosseiramente irresponsável em Washington que a causou.
Dado que não espero que Washington comece subitamente a comportar-se de forma responsável e a viver com orçamentos equilibrados, fico a pensar quanto tempo mais podemos contar com aquele cartão de crédito dourado.
• Será que outros países se tornarão menos dispostos a comprar Obrigações do Tesouro dos EUA? Poderão concluir que a nossa gestão fiscal é pouco fiável?
• Mesmo que continuemos a ter o crédito mais forte do mundo, poderão eles reduzir as compras por preocupação, despeito ou motivação política?
• O que aconteceria se um leilão do Tesouro falhasse? (Imagino que a Fed compraria os títulos não vendidos, mas sinto-me desconfortável com a ideia de criar o dinheiro, creditar os bancos com depósitos para que eles comprassem o dinheiro criado. No final de contas, de onde vem o dinheiro?)
• Continuaremos a ser o crédito mais forte do mundo se o dólar for menos aceite como moeda de reserva mundial?
• O que aconteceria ao défice – e, consequentemente, à dívida nacional – se os compradores exigissem taxas de juro mais elevadas nas Obrigações do Tesouro? Até à data, alguns dos nossos défices comerciais foram provavelmente reciclados em compras de Obrigações do Tesouro dos EUA. O que acontece às taxas das Obrigações do Tesouro se isso cessar?
Recuando até à Segunda Guerra Mundial e mais além, os EUA têm estado a "segurar as cartas". Trump acredita na força dos EUA e em ganhar com isso. É isso que as suas medidas sobre tarifas representam: deixar de "dar a festa" para o resto do mundo. Deixar de ser generoso na esperança de benefícios a longo prazo, mas sim realizar transações em que extraímos o justo valor.
Recebi muitas respostas amáveis à minha aparição de sexta-feira na Bloomberg TV, e vou usar um comentário de um espectador para concluir este assunto:
Nos anos 80, pessoas como (o conselheiro de Trump para o comércio e a indústria), Peter Navarro, decidiram que o facto de o Japão estar a ultrapassar os EUA nos automóveis ameaçava o futuro dos EUA.
O Japão, de facto, ultrapassou-nos e nunca mais olhou para trás.
A economia dos EUA mais do que duplicou de tamanho em relação ao Japão desde então. Duplicou mesmo depois de se ter em conta as alterações populacionais e a força da moeda. Duplicou apesar de termos perdido a liderança nos automóveis, ou será que duplicou em parte por causa disso? As margens no software de computador e nos motores a jato são provavelmente muito mais elevadas do que nos automóveis de mercado de massas.
O Japão explorou as suas vantagens na produção de automóveis, e os EUA passaram para coisas em que podiam alcançar uma vantagem própria. Não é exatamente assim que as coisas devem funcionar numa economia global dinâmica?
Como questionei num memorando em setembro, será uma boa ideia os governos tentarem anular as leis da economia num esforço para fazer com que as suas economias – que, se deixadas em paz, seguiriam o seu curso natural – satisfaçam as preferências políticas? Uma tarifa é uma "externalidade" ou "artificialidade" concebida para (a) desencorajar as exportações que de outra forma ocorreriam e, assim, (b) ajudar as empresas nacionais a realizar vendas que não ocorreriam se fossem deixadas a funcionar por conta própria. Qual será o custo e quem o suportará?
Conclusão
Considero este processo das tarifas até agora como o que os adeptos de futebol chamam de "autogolo" – um golo marcado para a outra equipa quando um jogador acidentalmente mete a bola na própria baliza. Desta forma, é muito parecido com o Brexit, e sabemos como isso acabou. O Brexit custou caro aos britânicos em termos de PIB, moral e alianças, e prejudicou a sua reputação de governação e estabilidade. Todos estes danos foram autoinfligidos.
Gosto da forma como as coisas têm corrido durante a minha vida, que convenientemente abrange 99% do período pós-guerra que tenho vindo a discutir. Alguns dos nossos gastos governamentais foram certamente mal gastos, tanto em casa como no estrangeiro, e a nossa dívida nacional não é motivo para celebração. Mas gostei de viver num mundo pacífico, próspero e cada vez mais saudável, e não estou ansioso por ver isso mudar. Há apenas alguns meses, a economia dos EUA estava a ter um bom desempenho, a perspetiva era positiva, o mercado de ações estava num máximo histórico e falava-se muito sobre o excecionalismo americano. Agora, se as tarifas de Trump forem implementadas, a economia dos EUA provavelmente sofrerá uma recessão mais cedo do que aconteceria de outra forma, terá uma inflação mais elevada e sofrerá extensas disrupções. Mesmo que as tarifas sejam totalmente revertidas, é improvável que as outras nações ignorem este incidente e concluam que não têm nada com que se preocupar em termos de relações com os EUA.
Ninguém deve descartar a concretização de alguns dos objetivos das tarifas acima referidos. A indústria transformadora dos EUA poderia aumentar, trazendo novos empregos e cadeias de abastecimento mais fiáveis. O nosso tratamento no comércio mundial poderia tornar-se mais justo. E a receita do Tesouro poderia aumentar.
Por outro lado, alguns dos benefícios esperados estão provavelmente fora de alcance. Em particular, quanto à redução do nosso défice comercial, é improvável que os EUA comprem menos a outros países do que eles compram a nós, enquanto os EUA forem maiores e mais prósperos e, portanto, tiverem maior poder de compra. Isto será especialmente verdade enquanto os nossos trabalhadores forem mais bem pagos, o que significa que a maioria dos bens produzidos nos EUA custa mais do que os bens produzidos noutros locais.
Os resultados esperados podem materializar-se, ou as consequências negativas podem ser sentidas, ou alguma combinação dos dois. No entanto, deve ter-se em mente que, enquanto as ramificações negativas das tarifas serão provavelmente sentidas quase imediatamente, quaisquer ganhos só deverão surgir a longo prazo, após um período de ajustamento de vários anos.
E quanto aos mercados financeiros? Nos últimos dias, houve uma mudança maciça na perspetiva económica e, em reação, uma enorme queda no mercado de ações. Como sempre, a questão-chave gira em torno da adequação da resposta até à data: foi adequada, inadequada ou excessiva? É ainda mais difícil responder a essa pergunta do que o habitual, uma vez que se pode ter pouca confiança de que o mundo económico do futuro não será significativamente diferente – e provavelmente pior do que aquele em que vivemos até agora. Por um lado, se as tarifas permanecerem como anunciadas e a retaliação levar a uma guerra comercial total, as consequências económicas poderão ser verdadeiramente graves. Mas, por outro lado, cabeças mais frias (e reações políticas e do mercado de ações altamente negativas) poderão prevalecer, fazendo com que as tarifas sejam reduzidas para níveis menos prejudiciais, talvez até levando a ganhos para o comércio livre.
Como é que a Fed deverá responder? A ameaça de recessão poderá exigir cortes de taxas acelerados para impulsionar a atividade económica. Ou a ameaça de inflação poderá fazer com que as taxas se mantenham mais elevadas, com os cortes adiados. Note-se, no entanto, que as medidas de combate à inflação, como as taxas mais elevadas, são provavelmente menos propensas a ter sucesso contra a inflação causada pela adição de tarifas aos preços de venda do que seriam contra a inflação mais típica impulsionada pela procura. O título de hoje é particularmente aplicável às ações da Fed: certamente ninguém sabe.
Nos mercados da Oaktree, o medo de incumprimentos (não infundado) fez com que a compensação de risco sob a forma de spreads de rendimento aumentasse substancialmente, levando a um aumento significativo dos rendimentos disponíveis no crédito. Ao mesmo tempo, prevemos uma maior incidência de dificuldades e um aumento da procura de soluções de capital personalizadas, o que significa que é provável que invistamos o nosso mais recente fundo de dívida oportunista mais rapidamente do que aconteceria de outra forma.
Parafraseando Mark Twain, há temas que rimam ao longo da história. Por essa razão, tal como reciclei o título do meu memorando pós-falência do Lehman para este, também vou pedir emprestado o seu parágrafo final:
Todos estavam felizes em comprar há 18-24-36 meses, quando o horizonte estava sem nuvens e os preços dos ativos estavam nas alturas. Agora, com riscos até então inimagináveis em cima da mesa e descontados, é apropriado procurar pechinchas: os bebés que estão a ser deitados fora com a água do banho. Estamos a tratar do assunto.
Numa nota pessoal, tive a sorte de visitar investidores em Montreal no dia do anúncio das tarifas e em Toronto no dia seguinte. Que altura para uma viagem ao Canadá! Comecei cada reunião dizendo que sou um dos centenas de milhões de americanos que respeitam o Canadá e o consideram um amigo e aliado. A receção foi emocionante. Este é um bom momento para todos nós nos ligarmos a amigos em todo o mundo.
9 de abril de 2025