Não fazemos ideia do que vai acontecer a seguir
Originalmente publicado no Blog "Collaborative Fund"
Não fazemos ideia do que vai acontecer a seguir
Para compreender o quão difícil é prever vai acontecer depois do mundo ter sido virado de cabeça para baixo - como aconteceu este ano - temos que conhecer a absurda história de como surgiu um dos desenvolvimentos agrícolas mais importantes da história moderna.
Tudo começou em 1815 quando o vulcão do Monte Tambora, na Indonésia, entrou em erupção.
Tambora foi um desastre total - quanto mais lemos sobre o assunto, mais nos damos conta de que poucos adjetivos lhe fazem justiça. Foi a maior erupção vulcânica da história da humanidade, 100 vezes mais poderosa do que o Monte Santa Helena. Dez mil pessoas morreram instantaneamente. A maioria dos sobreviventes morreu à fome depois de quase toda a vegetação da ilha de Sumbawa ter sido destruída.
A verdadeira catástrofe surgiu depois.
A coluna de fumo e gases da erupção vulcânica subiu a 42 quilómetros de altitude, propulsionando detritos até à estratosfera - uma das raras vezes em que isto aconteceu na história da humanidade. E a quantidade de destroços foi épica: Tambora ejetou cinzas suficientes para cobrir a Califórnia num manto de sessenta centímetros de profundidade.
As cinzas no ar espalharam-se pelo globo, onde causaram o caos. Provavelmente já viram fotos de São Francisco neste verão, quando o fumo e as cinzas dos incêndios florestais tornaram o céu temporariamente rubro. Tambora fez o mesmo com grande parte do mundo. E isto durou vários meses.
Assim teve início o que ficou conhecido como O Ano Sem Verão.
Com o sol bloqueado pelas cinzas, as temperaturas globais caíram, em média, 1,5 graus em 1816 - o ano mais frio desde que existem registos. Na Europa caiu neve em julho, não branca, mas um laranja acinzentado, misturada com cinzas. Em Nova York geou em agosto. Os habitantes da Nova Inglaterra começaram a referir-se ao ano como Mil e Oitocentos e Morreu Gelado.
As temperaturas glaciais e a ténue luz solar causaram um desastre agrícola. As colheitas fracassaram em todo o mundo. Seguiu-se a fome.
A Europa - que já se debatia com o rescaldo das guerras napoleônicas - foi atingida de forma particularmente dura. A Alemanha sofreu o pior. A fome e a escalada dos preços dos alimentos tornaram uma população desesperada em rebeldes. Um prefeito alemão escreveu:
A inflação e a fome eram sentidas tão duramente por tantos que, para que eles e seus filhos sobrevivessem, ferviam caracóis e coziam ervas verdes e comiam-nos. O resultado era uma debilitação que os impedia de trabalhar e, pior ainda, não conseguiam andar e, como resultado da fome, os seus pés e cabeças ficavam intumescidos.
Um desses alemães famintos era um rapaz de 13 anos chamado Justus von Liebig.
Liebig era uma criança normal e, na escola, era rotulado como "irremediavelmente inútil".
No entanto, Liebeg gostava de engenhocas e experiências. O pai de Liebig fabricava tintas e introduziu o filho ao mundo da química industrial, pela qual Justus se apaixonou irremediavelmente.
Justus von Liebig decidiu então duas coisas.
Uma era que queria ser químico. Doutorou-se aos 21 anos.
A outra era mais ambiciosa: profundamente marcado pela sua experiência durante a fome de 1816, Liebig devotaria a sua carreira de químico para melhorar a agricultura.
Foi exatamente isso que fez.
Liebig foi um dos primeiros cientistas a compreender o quão importante era o o nitrogénio para a saúde das plantas e para o rendimento da colheita, e como se poderia utilizar amónia para o fornecer artificialmente. Liebig popularizou também a lei do mínimo, isto é, a ideia de que a quantidade total de nutrientes para as plantas não era importante; a escassez de um único nutriente era suficiente para diminuir a produção. Esse nutriente era, geralmente, o nitrogénio. A amónia era o ingrediente que faltava para maximizar a produção e permitir colheitas saudáveis nos anos em que a Mãe Natureza não cooperava. Como em 1816.
O trabalho de Liebig - aperfeiçoado nas décadas seguintes, particularmente pelos cientistas que aprenderam como fabricar amónia sinteticamente - deu origem à indústria de fertilizantes à base de amónia que domina ainda hoje a agricultura global.
O impacto disto na humanidade é difícil de exagerar. Vaclav Smil escreve, no seu livro, Enriching The Earth:
A síntese industrial da amónia ... foi mais importante para o mundo moderno do que a invenção do avião, da energia nuclear, dos voos espaciais ou da televisão. O crescimento da população mundial de 1,6 mil milhões de pessoas em 1900 para os seis mil milhões de hoje não teria sido possível sem a síntese da amónia.
A história de Liebig é impressionante em qualquer contexto. Mas é fascinante quando nos questionamos: Liebig teria seguido uma carreira na química, com especial foco na agricultura, e teria descoberto os fertilizantes à base de nitrogénio se o Monte Tambora, a 7.000 milhas de distância, não tivesse entrado em erupção e causado a fome na Alemanha?
Provavelmente não.
E isto é de loucos.
Um vulcão explode e uma criança num continente diferente decide-se a descobrir como podemos alimentar o planeta mais eficientemente. Em 1816, ninguém faria esta conexão de causa e efeito. No entanto, foi o que aconteceu.
E Liebig não foi o único. O desastre de Tambora despoletou vários percursos não intencionais.
Na tentativa de encontrar uma alternativa aos cavalos, depois da escalada dos preços das rações durante a fome, o alemão Karl von Drais inventou a bicicleta.
Os movimentos migratórios da Nova Inglaterra para as planícies centrais - que foram menos afetadas pelas cinzas de Tambora - disparou. O historiador Lawrence Goldman defende que a migração para o oeste de Nova York em 1816 - impulsionada pela procura de colheitas mais ricas - foi essencial no crescimento dos movimentos anti escravatura.
Tudo isto provocado por um vulcão.
E isto deveria fazer-nos pensar: que percursos não intencionais serão despoletados pelo vírus de 2020?
Há uma teoria na biologia evolucionária chamada Teorema Fundamental da Seleção Natural de Fisher.
É a ideia de que a variância é igual a força, uma vez que, quanto mais diversa for uma população, maiores serão as probabilidades de ela apresentar novas características que possam ser selecionadas. Ninguém consegue identificar que características serão úteis; não é assim que a evolução funciona. Mas se criarmos muitas características, a útil - seja ela qual for - estará lá, nalgum sítio.
O mesmo se aplica à diversidade de eventos que uma sociedade enfrenta.
É muito difícil, se não mesmo imprudente, imaginar um lado positivo no Covid-19. Podemos até nem ter visto o pior.
Mas todos nós, no mundo inteiro, fomos subitamente expostos a problemas que nunca antes tínhamos visto. Estamos agora cientes de novos riscos. Novas restrições em como vivemos, trabalhamos e nos divertimos. Todo um novo conjunto de perspetivas sobre como manter as nossas famílias seguras, administrar uma empresa e utilizar a tecnologia.
Algumas das mudanças são óbvias. Já estamos melhores e mais rápidos no desenvolvimento de vacinas do que há um ano. Os médicos são mais experientes. O trabalho remoto é mais eficiente. Viajar não é tão necessário.
Depois, há um segundo nível de mudanças: o nosso novo conhecimento de vacinas de mRNA poderá ajudar no tratamento de outras doenças, tal como o cancro. Parece provável, mas quem sabe?
Depois, a grande incógnita: a mudança louca, desconexa e contraintuitiva que apenas seremos capazes de compreender em retrospetiva. O tipo de coisa que apenas acontece quando sete mil milhões de pessoas veem as suas viradas de cabeça para baixo, passam por um conjunto de situações que nunca antes tinham imaginado e são motivadas ou forçadas a fazer algo completamente diferente do que tinham pensado em janeiro.
Ninguém deve sequer ousar tentar adivinhar o que pode acontecer. A imprevisibilidade é total.
No entanto, quando forma divulgadas boas notícias - sobre as vacinas - esta semana, várias pessoas disseram: "há luz no fim do túnel". Talvez. Mas suspeito que não fazemos ideia do que vai acontecer a seguir.