Cavalos de corrida e psicopatas
Originalmente publicado em 24 de outubro de 2021
Cavalos de corrida e psicopatas
Esta foi uma das coisas mais difíceis que já tentei alguma vez escrever. E foi só após mais de cem horas que percebi do que se tratava. É acerca da importância de compreender o mundo e de como isto pode alterar a direção das nossas vidas.
O perenemente perspicaz estratega de investimentos, Michael Mauboussin, costuma fazer referência a um famoso estudo de analistas de corridas de cavalos. Os responsáveis pelo estudo pediram aos analistas que fizessem previsões para a corrida com base em 5 elementos de informação para cada cavalo. De seguida, pediram-lhes que fizessem as mesmas previsões com 10, 20 e 40 elementos de informação. Os analistas não ficavam mais precisos com cada informação adicional, mas ficavam mais confiantes.
Os analistas utilizavam cada elemento adicional para confirmar a sua opinião preexistente. Todos nós agora sabemos como qualquer pessoa armada com redes social ou um motor de busca consegue encontrar "evidências" infinitas para uma crença falsa. Tanto na vida como nos investimentos, o viés da confirmação costuma ser a diferença entre parecer inteligente e estar certo. E às vezes algo muito, muito pior.
Os vieses cognitivos não são um tópico particularmente interessante para mim. Aprender apenas sobre vieses não parece mudar muito o comportamento das pessoas. Mas fiquei fascinado por uma excelente crítica ao novo livro de Julia Galef, The Scout Mindset. Scott Siskind escreve:
Dos cinquenta vieses descobertos por Kahneman, Tversky e seus sucessores, quarenta e nove são peculiaridades engraçadas e um está a destruir a civilização. Este último é o viés da confirmação - a tendência de interpretar as evidências como uma confirmação das nossas crenças pré-existentes, em vez de mudar as nossas opiniões.
Por que razão está o viés da confirmação a "destruir a civilização?" Acho que é muito útil dar um passo atrás e examinar esta ideia através do framework universal do mapa e território. A consciência existe num espectro que vai da abstração pura (mapa) ao envolvimento puro (território).
O livro The Scout Mindset de Galef propõe-se a remover informação para fornecer uma visão mais clara do território. O Soldier Mindset adiciona apenas mais confirmações para tornar o mapa mais elaborado, independentemente da sua precisão.
O lado muito, muito negro aqui é que, quanto mais forte é uma abstração, muitas vezes uma mentira completa, mais motivadora pode ser para o comportamento tribal. A metáfora do soldado é duplamente apropriada. Levado ao seu extremo mais terrível, a guerra e o genocídio são facilitados pela abstração. Além dos laços de parentesco diretos, desenvolvemos ficções coordenadas comuns, como nacionalidades. Deixamos de mobilizar uma tribo de centenas para nações de milhões. Quantas pessoas acha o leitor que seria capaz de convencer, pessoalmente, a arriscar a vida por si? Como afirma o autor de Sapiens, Yuval Noah Harari: "nunca conseguiria convencer um macaco a dar-lhe uma banana prometendo-lhe bananas ilimitadas após a morte, no paraíso dos macacos". Uma abstração motivadora deve assumir os limites cognitivos da empatia, além do que podemos realmente conhecer e amar pessoalmente. E ainda assim, podemos competir e matar mais facilmente despojando a humanidade universal dos nossos inimigos, transformando-os num grupo externo.
Ao refletir sobre os eventos culturais dos últimos dois anos, e dos últimos dois mil anos, esta frase de Karen Stenner é a passagem sobre a qual mais pensei:
Todas as evidências disponíveis indicam que a exposição à diferença, falar sobre a diferença e aplaudir a diferença - as marcas de uma democracia liberal - são as formas mais seguras de ofender aqueles que são inatamente intolerantes e de garantir o aumento da expressão das suas predisposições em atitudes e comportamentos manifestamente intolerantes. Paradoxalmente, então, parece que podemos limitar melhor a intolerância à diferença desfilando, falando e aplaudindo nossa igualdade.
Os movimentos sociais que criam mais grupos internos têm menos probabilidade de sucesso do que aqueles que enfatizam a nossa humanidade universal. Há um estudo notável em que os participantes assistiam a um vídeo de uma mão a ser esfaqueada, enquanto que a sua resposta empática era medida por ressonância magnética. Concluiu-se que a resposta empática era maior quando os participantes viam um evento doloroso ocorrer numa mão identificada com o seu próprio grupo externo, em vez de uma mão identificada com um grupo externo diferente. Basta uma única palavra que enfatiza a diferença para mudar a forma como as pessoas se sentem relativamente a outras que sentem dor.
A abundância de exemplos sangrentos e horríveis significa que este conceito é intuitivamente bem compreendido ao nível social. Mas nem sempre o aplicamos a nós mesmos. Utilizando a minha metáfora hemisférica preferida: a lateralização extrema do hemisfério esquerdo do cérebro é como um psicopata com olhos de tubarão que consegue apunhalá-lo e não sentir nada. Somos apenas um saco abstrato de carne e órgãos. Num contexto frio de teoria dos jogos, é totalmente "racional" explorar ou prejudicar outra pessoa para conseguirmos o que desejamos. Em contraste, a lateralização extrema do hemisfério direito do cérebro é como a experiência da neuroanatomista Jill Bolte Taylor. O seu forte derrame cerebral no hemisfério esquerdo deixou-a com a sensação de união feliz com o universo, mas sem capacidade de ação para chamar uma ambulância. Ainda precisamos de separação e competição para atuar no mundo, mas não em demasia.
Voltando a Galef, este é um dos principais motivos pelos quais o seu trabalho é tão especial: atinge o equilíbrio cada vez mais raro do "pensador híbrido". Ela oferece excelentes sugestões e ferramentas para nos tornarmos mais racionais, mas com uma necessidade de valores fundamentais. O remédio para o viés da confirmação parece, ao princípio estranho e moralizador. Mas faz sentido! Se a racionalidade máxima está totalmente desconectada, o oposto precisa de estar conectado a algo para além de ideias flutuantes e abstrações. Tal como Siskind escreve:
Dan Ariely, ou quem quer que seja, prometeu-nos que, se lermos alguns artigos sobre vieses cognitivos, nos tornaríamos melhores pensadores. The Scout Mindset também quer que leia esses artigos, mas talvez precisemos também de nos tornarmos boas pessoas.
Por mais fofinho que isto possa parecer, isso parece literalmente verdade, pelo menos em termos da nossa forma de pensar. O neurocientista António Damásio conta a história de Elliott, um homem que perdeu a parte do cérebro que liga os lobos frontais às emoções. Apesar de permanecer no percentil 97 de QI, ele carecia de motivação e ficava paralisado a cada decisão. O seu fracasso recorrente em aprender com o feedback negativo custou-lhe a esposa, o emprego e as poupanças. O seu intelecto não era suficiente para ele tomar boas decisões. Ele precisava estar ligado a algo mais- o que quer que lhe queiramos chamar - emoção, intuição, valores ou o inconsciente.
O último artigo que escrevi explorou a forma desagradável como as nossas crenças obsoletas frequentemente precisam de ser visceralmente destruídas antes de podermos ver o mundo com clareza. Mas, à medida que o fumo se dissipa, temos ainda que agir. Depois de sabermos exatamente onde estamos no mapa, temos ainda que nos orientar e movermo-nos no território. E este é o ponto-chave que aprendi ao escrever este artigo. Se reconstruirmos o nosso novo modelo com base em abstrações, não é provável que esteja mais correto que o anterior. Portanto, precisamos de o reconstruir em harmonia com o mundo ao nosso redor. Os taoistas perceberam que ser capaz de fazer essa distinção era a diferença entre o sucesso sem esforço e o fracasso retumbante.
Numa coincidência notável, um amigo enviou-me, esta semana, uma entrevista surpreendente com Philip Shepherd chamada "A Harmonia Oculta do Mundo". Ele fala sobre como alcançar um fluxo mais holístico com o mundo:
É nisto que a cabeça se especializa - abstração - e a palavra 'abstrato' significa literalmente 'afastar-se de'. Em muitas outras culturas, o centro do pensamento é vivenciado no corpo, que tem uma afinidade sem fronteiras com o mundo ao seu redor. A cada momento, está em sintonia com o mundo. "Afastámo-nos" do mundo e da inteligência do corpo para que nenhum possa ser sentido em sua plena realidade. Estar assim cronicamente desligado faz-nos sentir à parte, separados de tudo ao nosso redor. Sentimo-nos cronicamente sozinhos.
Esta é a diferença entre dissonância e ressonância. Quando a cabeça e o corpo estão alinhados ou em conflito. Tal como no famoso exemplo de George Soros e a sua dor nas costas, a sensação corporal é um indicador-chave de dissonância inconsciente; de quando o seu intelecto está a perder algo importante do mundo exterior. As costas de Soros doíam quando seu portfólio estava mal alocado. Soros tinha estabelecido, com base na sua experiência de anos no mercado, um reconhecimento de padrão e sentiu dissonância física quando algo fez ativar a sua intuição. Por estar a ocorrer no inconsciente, a dissonância é sentida primeiro como algo incómodo. Mas a capacidade de interpretar intelectualmente estas sensações é o último passo crítico. Primeiro, temos que saber o as dores nas costas significam e depois prestar-lhes atenção.
Como conseguimos a ressonância? Numa segunda coincidência notável, um ouvinte da minha recente aparição no Infinite Loops entrou em contacto comigo, enquanto eu escrevia este artigo. Recomendou-me um podcast sobre.... genocídio, investimento, valores e utilização do inconsciente. O sobrevivente do Holocausto e famoso investidor em valor Arnold Van Den Berg discutia como as citações são uma forma que o seu inconsciente utiliza para comunicar os seus valores. Lugares para os quais a nossa atenção é atraída e "ideias fixas" que simplesmente não conseguimos abandonar são indicadores-chave dos nossos valores. Nietzsche escreveu-o de forma belíssima (nesta citação em que não consigo deixar de pensar ...):
Para a questão mais importante, no entanto, existe um método. Deixe que a jovem alma examine a sua própria vida tendo em vista a seguinte pergunta: "O que realmente amamos até agora? O que elevou sempre a nossa alma, que a dominou e deleitou simultaneamente?" Reúna esses objetos sagrados numa fila diante de si e talvez eles, pela sua natureza e ordem, revelem uma lei: a lei fundamental do próprio ser.
Van Den Berg compilou um livro de 5.000 citações sobre todos os assuntos. Levei a cabo o mesmo exercício há vários anos e teve em mim um impacto impressionante. O processo de síntese também nos une como pessoa.
O princípio universal que resulta de tudo isto é o poder do nosso filtro. Talvez a melhor e mais simples definição de sabedoria que já ouvi seja "saber que informações são importantes". Este tipo de conhecimento não é conseguido apenas no intelecto. O nosso inconsciente está constantemente a ser alimentado com novos dados e, de seguida, comparados com a nossa experiência. Os analistas de cavalos de corrida que viram milhares de cavalos têm experiência: a capacidade de filtrar 40 variáveis para conseguir as 5 que importam. O valor da informação é determinado pelo que é descartado no processo da criação. A título meramente ilustrativo, este artigo representa uma destilação de cerca de 400 horas de leitura e 6 anos de reflexão. A síntese destas ideias pode ser apenas um viés da confirmação, mas elas têm uma profunda ressonância em mim. E este é o ponto crucial do processo de filtragem. Esta ressonância sugere um alinhamento interno em torno dos valores. O leitor pode detetá-lo intuitivamente quando o lemos, o ouvimos ou o falamos. Shepherd questiona-se se o que ouvimos como "eloquência" são, na verdade, as palavras que as pessoas deixam emanar de si próprias.
Isto é provavelmente um absurdo romântico, mas gosto de imaginar os nossos corações como mediadores do processo de filtragem de "seleção de valor" entre a "cabeça" e as "tripas". É onde a ressonância é sentida. A incrível omnipresença desta metáfora faz crer que é mais do que apenas uma expressão. O divertido livro Everybody Lies conta a incrível história de como um homem chamado Jeff Seder tentou descodificar que características determinariam o sucesso de um cavalo de corrida. Ele elencou um número virtualmente ilimitado de dados para tentar encontrar o que realmente importa. Desenvolveu até uma forma patenteada de ultrassons para analisar os órgãos internos de um cavalo. Eventualmente, descobriu que o tamanho do ventrículo esquerdo do coração era uma grande vantagem. A sua análise revelou um cavalo anteriormente desconhecido que um magnata da cerveja egípcio estava a tentar vender. Mas ele tinha um ventrículo esquerdo que estava no percentil 99,61. Seder pediu que não vendesse o "Cavalo nº 85" e o magnata acabou por comprá-lo de volta num leilão. O cavalo nº 85 foi rebatizado Faraó Americano; o primeiro cavalo em três décadas a vencer o Triple Crown. O coração revelou a verdade.